terça-feira, 23 de agosto de 2011

MEMÓRIAS DE PORTÕES E QUINTAIS


Era dos diabos aquela velha. Morava em frente à casa da tia , portinhola com portinhola,  um espaço mínimo entre os limites dos terrenos.Aos meus quatro anos, aquele pedacinho de terra era terra-de-ninguém, bem poderia vir morar ali uma família, dava para levantar uma cabana de anões, como aquele que um dia vi escovar os cavalos nos arredores da  entrada do circo.Se assistia aos espetáculos pelo lado de fora da lona, a imaginar os números pelo ruído das palmas, ou de algum boato  que se ouvia na venda, quando se ia comprar o pão fiado no Bar do Seu Joaquim. Eu pedia ao pai, mas nunca  havia dinheiro para os ingressos ; as moedas depositadas uma a uma nos cofrinhos de plástico nunca puderam alcançar a tempo as risadas dos palhaços e quando o dinheiro chegava no valor exato do ingresso o circo já ia longe e os detalhes imprimidos na memória, as cores, os barulhos, os bichos ficavam a rondar a imaginação nas  brincadeiras e o lugar de novo ficava baldio. Eu nunca entendi o sentido daquele abandono entre os portões, se para mim era bem mais fácil ter apenas um e depois seria uma imensidão de terras. O ferrolho do  da tia eu esforçava mais para abrir, sempre estava duro, enferrujado e denunciava com o rangido minha fuga; o da velha ela só encostava. Se chamava Genária.
Eu percorria aqueles quintais, atravessando barreiras como fazem os  bois, quando se desviam das cancelas , indiferente a donos e cercas.Meu corpo rebelde e ágil não respeitava limites genealógicos ou geográficos.Para mim não havia cercas que bastassem.E quando menos esperava estava eu ali, à sua porta, a olhá-la compenetradamente a ralar a mandioca para a farinha.A velha tinha os dentes amarelos, mas seu sorriso claro me aliviava o arfar da fuga e o tremor faminto das pernas.Eu me prostrava ali e não arredava pé até que ela me chamava com voz forte, confundida entre afeto e rudeza:
_ Entra, menina !
E eu entrava.
A casa era úmida, cheirava a bolor e cebola. A velha tinha um cheiro forte, de alho e criolina. Ela fazia logo um café, delicioso, forte e me dava para tomar com um pouco de leite. Eu sempre pedia para tirar a nata e ela explodia logo:
_ Eta menininha enjoada ! Você já comeu ?
_ Hã, Hã -  era minha resposta e envergonhava emudecia, olhando o chão lustrado  de vermelhão. Depois, incomodada com o silêncio dava um sorrisinho, também amarelo. E esperava, imóvel,  a observar a velha com a barriga inchada no fogão.
_ Comeu, comeu...comeu  nada, tá branca feito uma bufa ! Toma, come tudo, não é pra deixar no prato que comida não é barata, ouviu ?
O cheiro da comida era maravilhoso, mas eu sentia nojo pensando no bicho, meio confusa de não entender direito porque a velha sempre repetia aquilo. É claro que não se come barata ! Será que a velha pensava que em casa a gente comia ? Nessa hora eu tinha um ódio da velha, eu achava a velha burra , não é por que eu era criança que ela podia falar assim comigo, como se eu ainda não entendesse nada, eu entendia tudo viu ?  Mas depois esquecia a raiva, ainda mais com o cheiro  bom da comida  eu  me entorpecia, eu esquecia num minuto aquele insulto e devorava o prato.
Ela ligava a televisão e vidrava na novela. Eu, sentadinha ao seu lado, no sofá,de barriguinha cheia,mas  sem poder brincar nem abrir a boca, me aborrecia. Então sem saber como, adormecia e de repente estava de novo na cama da minha tia. A velha tinha aberto  pra mim a cancela do sonho. Eu,  livre, feito bicho no pasto, brincava solta nos quintais de terra batida onde não havia cercas nem donos.Onde eu era ovelha, camelo, cavalo ou borboleta. Menos barata !

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