quarta-feira, 24 de agosto de 2011

O Jabazinho

Era o Jabá. O Jabazinho. Era esse  o nome dele. Quer dizer, o apelido, o nome mesmo era André.  Sim, o  Andrezinho. O Andrezinho da Mamãe porque nunca ninguém jamais  o chamou assim, pelo nome. Só a mãe e um dia, o cara do cartório. Mas Andrezinho era eufemismo, coisa de mãe, pura proteção porque o Jabá era um moleque enorme, gorduchão, umas bochechas vermelhas e inchadas de buldogue velho, cheio de sardinhas, e um cabelo ruivo, todo espetado : a mãe passava gel todas as manhãs antes do moleque ir pra escola.O cheiro do gel era horrível, devia ser da pior qualidade porque aquele cheiro misturado ao  suor dele, que  vinha da  cabeça e ia escorrendo pela cara juntava com o odor da roupa impregnada de cigarro da mãe e misturava com aquela fedentina  de chulé que subia do seu   all star vermelho , que ele não tirava nunca...Meu Deus! Os moleques da minha turma; o Fumaça, o Jeca, o Netinho avisavam de longe quando ele vinha chegando : O Jabá tá vindo, ô o Jabá ! Ô  o Jabá ! E o pessoal se dispersava. A mãe já tinha ido uma tantas vezes reclamar  com a professora que o menino era maltratado na escola. Onde já se viu o Andrezinho, o filho dela, um menino tão bonzinho, que não era capaz de fazer mal  nem pra uma mosca, não falava um palavrão, nada e a  criançada chamando ele na escola de tudo quanto era nome : de Jabazinho, de Fedentina, de Sovaco de Velha...Que um dia o menino chegou cabisbaixo, tinha vindo da rua, e o Fumaça junto com o  Dantinho e o Didico, que eram da outra série,  tinham chamado o Andrezinho de um nome tão feio que o menino não conseguia nem repetir,  ficou mudo, acabrunhado num canto o dia inteiro, que  não tocou na comida.  E ela ameaçou de tirar o menino da escola, ir na Delegacia de Ensino dar queixa da professora se ela não tomasse providência.
Mas todo mundo achava; as mães dos outros garotos, o pessoal do bairro e até a diretora, que a mãe exagerava. Que isso era coisa de criança. Como é que a professora ia controlar a boca suja e a maldade dos meninos? Todo mundo sabe que menino é terrível, adora botar apelido, avacalhar com todo mundo, ainda mais com o Jabá, o queridinho da mamãe.Nós, as meninas não, mas os meninos...
 A professora tentava se defender como podia, ameaçava chamar a diretora, suspendia o recreio, colocava o Jabá pra sentar na frente pertinho dela, e aí que a coisa “fedia mesmo”. Aquilo tudo era um prato cheio pra eles,  e a  lista de apelidos do Jabá só aumentava. A molecada  segurava a língua afiada só na frente da professora porque quando chegava  o recreio não havia limites pra imaginação dos meninos : Chulé de Defunto, Bafo de Urubu,  Punzinho de Gambá era o que de mais cheiroso se podia esperar deles.A professora  foi largando mão, evitava o assunto, fazia que não ouvia, desconversava.  Também já não queria receber a mãe, que vinha sempre com a mesma ladainha – Ah, meu Andrezinho ! ! !  Xingaram meu Andrezinho !!
Um dia ela  se encheu, disse duro pra  diretora que se ela quisesse que recebesse a mãe, que isso estava prejudicando o andamento da matéria, que ela não ia dar bola pra confusão de moleque. A diretora fez a parte dela, dava uns toques de leve pra mãe, pra ver se ela  botava o menino pra tomar banho e lavar a cabeça  antes da escola, que ela sabia que não era culpa da mãe,que essa moda agora dos meninos de botar gel !  A diretora chegou até a abrir mão do uso do uniforme, disse que não iria exigir isso do menino, imagina, se ela sabia que a mãe tinha que lavar a camiseta dele, que criança sua muito mesmo, corre no recreio, rola no chão. Camiseta de escola suja demais! A  mãe nem tinha de ter obrigação de ter uma por dia,que uniforme era caro,  mais valia que o menino viesse com uma outra branca, sem emblema mesmo, mas  que tivesse limpinha e cheirosa, enquanto a mãe lavava a da escola. Mas essa sabatina pedagógica toda não adiantava muito com  a Dona Carminha, a mãe do Andrezinho. Ela  estourava logo:
_ O que a senhora quer dizer com isso Dona Matilde ? Que eu não dou banho no Andrezinho ? Que eu não lavo a roupa dele ?
E não lavava mesmo.
De modo que as circunstâncias e o tempo acabaram cunhando no menino o nome de Jabá. O Jabazinho.
A casa do Jabá era colada na minha. Na frente, do outro lado da rua era a casa do Fumaça e a gente se reunia na frente da casa dele , porque  o Seu Fernando, o pai  do Fumaça , que era gente boa e  não esquentava com nada,  não ia pegar no pé da gente  só por causa do barulho. Então a nossa turma ficava até tarde, brincando na rua. E batia , de pirraça, tarde da noite na casa do Jabá.  Aí ele saía com os olhos cheios de  remela e respondia:
_ Pô, eu já tava dormindo ô !
 A camiseta  da escola grudada no corpo de suor dava pra ver as banhas do Jabá  se derretendo.
_ E aí Jabá, quer participar da Noite de Terror ?  A gente deixa, mas a história tem que ser suja, quer dizer sua -  a gente falava pra provocar. Porque as de terror eram as que a gente mais gostava. Ele nem precisava responder que a mãe não queria que ele brincasse com a gente na rua porque ela já berrava lá de dentro:
_  André, eu já te falei...será que eu tenho que pegar o chinelo de novo moleque ? Será que com você é só na porrada, Andrezinho ?
E ninguém entendia aquilo.
_ E aí, André, para de frescura, fica aí com  a gente cara, vamos brincar ? Se você  for homem vamos agora  na Viela dos Cacos, no Escadão. É lá que a gente vai contar as histórias.
_ Pô, eu já falei que minha mãe não gosta que eu fique até tarde na rua, ela não gosta, já é tarde, eu tenho que entrar. Vocês não ouviram minha mãe chamando ?
E era sempre a mesma história com o Jabá. Até que a gente deu de bater na casa dele mais cedo e um dia conseguimos finalmente arrastar o Jabá pro Escadão. A gente deixou a história de terror dele por último, porque os meninos disseram que era especial, que ele nunca tinha vindo na turma contar uma história. Mas quando chegou a vez da história dele o Jabá falou:
_ Eu tenho que ir, eu tenho que ir, minha mãe vai me pegar, ela disse que era pra eu voltar cedo, ela não gosta que eu fique até tarde da noite.
_  Mas o que isso Jabá, ? Ainda tá cedo... e a sua história Jabá ?
_ Não, não , eu tenho que ir, eu tenho que ir.
E a gente estranhou aquilo, porque a mãe do Jabá era uma louca, a gente sabia, mas não com ele... Ele era o Andrezinho. Então a gente cismou de entrar na casa do Jabá, a gente ia entrar lá de qualquer jeito ! E o Fumaça falou:
_ Então a gente vai com o Jabá, pessoal , pra  mãe dele  não bater nele.
_ Não, não, você tá louco, Fumaça ? Minha mãe me arrebenta.
 E amarelou...Nunca tínhamos visto o Jabá daquele jeito. A gente sempre achou que aquela conversa de pegar o Jabá na porrada era conversa mole da Dona Carminha, que cão que late não morde. Quem não conhecia a fama de escandalosa da mãe do Jabá, que só sabia armar o barraco e depois saía  com o rabinho entre as pernas... ? Ah, meu Andrezinho,  meu Andrezinho...
Então a gente resolveu que ia pagar pra ver aquilo da mãe do Jabá pegar ele na porrada.
A turma toda se postou diante do portão da casa dele e, o Naldinho que sabia que  era o único menino que a mãe do Jabá tolerava, tomou coragem e gritou do portão:
_  Ô Dona Carminha, não bate no Jabazinho, não ! A  culpa foi toda da gente que segurou ele na rua. A gente tava contando história de terror.
E Dona Carminha, bufando, saiu de camisola, os peitões aparecendo, e assim  toda séria, com aquela voz rouca e o bafo de cigarro que se sentia de longe  foi logo declarando:  
_ História de terror, vocês vão ver agora o que é história de terror ! Entra já Andrezinho e traz o meu chinelo.
O Jabazinho  entrou apavorado trazendo o chinelo rosinha de camurça da mamãe e levou uma baita surrinha cor-de-rosa. O Andrezinho...




O velho amigo e a Poética

Ontem me veio ele, agora em vestes de velho amigo, tão alegre e lépido , parecia passarinho... Suas asinhas em riste me abraçaram sofregamente num suspiro de alecrim.
Sua camisa branca, favorita, de colarinho puído, alva, onerosamente esfregada à mão me ofuscou a vista e por isso virei rapidamente  o rosto para beijar sua face. Me apresentou  breve e pesadamente seu velho amigo, o Aristóteles, enquanto ainda arrastava-o pelos braços.
Sentou-se desajeitadamente, mas endireitou-se logo,  à moda de um cavalheiro ,  na cadeira à frente  e pediu seu favorito chocolate suíço. Enquanto engolia consideráveis goles da leitosa bebida  me dava instruções aritméticas de como pensar a vida em termos de  Poética e olhava para o Outro, calculadamente, a intervalos regulares, acenando a cabeça em tom afirmativo como que pedindo e dando ao mesmo tempo  os mesmíssimos conselhos a si e ao Mestre, que calado, escutava. Sim,  àquele mesmo  que em um dia remoto teria sido seu orientador mudo  a esse meuamigo  tão autodidata e resoluto, avesso à conselhos, de nenhuma espécie, nem acadêmicos. E veja que a Academia era para ele o Paraíso, o lugar último onde iam as sescientes almas que tendo já galgados os degraus da sabedoria terrena, davam seu último suspiro e ingressavam no abismo do conhecimento sem fim.Eu, cartesianamente anotava tudo na minha cadernetinha de super-mercado enquanto atentamente recebia suas instruções pausadas e religiosamente proferidas.
Uma hora ou outra pigarreava baixo, contidamente, para não desconcentrar a conversa nem dar vexames , seus modos contidos, delineadamente precisos...Exasperações  não eram de fato do seu feitio.Sua natureza era branda, etérea demais, lânguida demais para um sorriso demasiado curvo, para um gesto demasiado transverso, para um conceito demasiado intrínseco.Tudo nele era sem bordas e exato. Seu rosto delicado, de traço instruído e culto o deixava mais remoçado, apesar da idade em franca evolução. Éramos amigos, chutando baixo, uns 20 anos para mais. E ele já era consideravelmente velho, pelo menos para mim, naquela ocasião. Mas isso não importava, nunca nos importou, pelo contrário, era uma pitada a mais, um devaneio a mais, uma estrofe a mais de um poema longo, de uma epopéia que eu ia tragando a gotas, meticulosamente nossas vidas . Cada verso uma fisgada, um fino fio de ácido que corroia em silêncio, os nervos cindindo suas marcas indeléveis no meu enredo.
Nas noites sem lua, passados os anos, o corpo já inerte na cama, esmaecido, e  ainda o veneno agindo, agindo ainda... Seu efeito concentrado, cumulativo sob a pele inchada e ele ali, sem arredar passo, uma cobra atávica, já sem dentes, enrolada e mórbida, sob meus pés.

POEMA

Eu vou brindar as minhas rosas
Eu vou cuidar do meu jardim
Eu vou regar as minhas ancas
Nas madrugadas de cetim
Eu vou compor as minhas horas
Até que o choro chegue ao fim
Eu vou marcar na tua face
O meu sorriso de carmim

Eu vou brindar as minhas ancas
Eu vou regar as minhas horas
Eu vou compor as minhas rosas
Eu vou cuidar do meu jardim

Eu vou brindar as minhas ancas
Eu vou regar as minhas horas
Eu vou compor as minhas rosas
Até que o choro chegue ao fim

Eu vou marcar na tua face
O meu sorriso de carmim

terça-feira, 23 de agosto de 2011

POEMA

A MORTE É UMA GOTA LENTA NO MEU OLHO ESQUERDO
ENQUANTO À NOITE OUÇO AO LONGE A BUZINA AGUDA DE UM AUTOMÓVEL NO ASFALTO MOLE E O CROCITAR DO GRILO POUSADO NUM ARANHA-CÉU

MEMÓRIAS DE PORTÕES E QUINTAIS


Era dos diabos aquela velha. Morava em frente à casa da tia , portinhola com portinhola,  um espaço mínimo entre os limites dos terrenos.Aos meus quatro anos, aquele pedacinho de terra era terra-de-ninguém, bem poderia vir morar ali uma família, dava para levantar uma cabana de anões, como aquele que um dia vi escovar os cavalos nos arredores da  entrada do circo.Se assistia aos espetáculos pelo lado de fora da lona, a imaginar os números pelo ruído das palmas, ou de algum boato  que se ouvia na venda, quando se ia comprar o pão fiado no Bar do Seu Joaquim. Eu pedia ao pai, mas nunca  havia dinheiro para os ingressos ; as moedas depositadas uma a uma nos cofrinhos de plástico nunca puderam alcançar a tempo as risadas dos palhaços e quando o dinheiro chegava no valor exato do ingresso o circo já ia longe e os detalhes imprimidos na memória, as cores, os barulhos, os bichos ficavam a rondar a imaginação nas  brincadeiras e o lugar de novo ficava baldio. Eu nunca entendi o sentido daquele abandono entre os portões, se para mim era bem mais fácil ter apenas um e depois seria uma imensidão de terras. O ferrolho do  da tia eu esforçava mais para abrir, sempre estava duro, enferrujado e denunciava com o rangido minha fuga; o da velha ela só encostava. Se chamava Genária.
Eu percorria aqueles quintais, atravessando barreiras como fazem os  bois, quando se desviam das cancelas , indiferente a donos e cercas.Meu corpo rebelde e ágil não respeitava limites genealógicos ou geográficos.Para mim não havia cercas que bastassem.E quando menos esperava estava eu ali, à sua porta, a olhá-la compenetradamente a ralar a mandioca para a farinha.A velha tinha os dentes amarelos, mas seu sorriso claro me aliviava o arfar da fuga e o tremor faminto das pernas.Eu me prostrava ali e não arredava pé até que ela me chamava com voz forte, confundida entre afeto e rudeza:
_ Entra, menina !
E eu entrava.
A casa era úmida, cheirava a bolor e cebola. A velha tinha um cheiro forte, de alho e criolina. Ela fazia logo um café, delicioso, forte e me dava para tomar com um pouco de leite. Eu sempre pedia para tirar a nata e ela explodia logo:
_ Eta menininha enjoada ! Você já comeu ?
_ Hã, Hã -  era minha resposta e envergonhava emudecia, olhando o chão lustrado  de vermelhão. Depois, incomodada com o silêncio dava um sorrisinho, também amarelo. E esperava, imóvel,  a observar a velha com a barriga inchada no fogão.
_ Comeu, comeu...comeu  nada, tá branca feito uma bufa ! Toma, come tudo, não é pra deixar no prato que comida não é barata, ouviu ?
O cheiro da comida era maravilhoso, mas eu sentia nojo pensando no bicho, meio confusa de não entender direito porque a velha sempre repetia aquilo. É claro que não se come barata ! Será que a velha pensava que em casa a gente comia ? Nessa hora eu tinha um ódio da velha, eu achava a velha burra , não é por que eu era criança que ela podia falar assim comigo, como se eu ainda não entendesse nada, eu entendia tudo viu ?  Mas depois esquecia a raiva, ainda mais com o cheiro  bom da comida  eu  me entorpecia, eu esquecia num minuto aquele insulto e devorava o prato.
Ela ligava a televisão e vidrava na novela. Eu, sentadinha ao seu lado, no sofá,de barriguinha cheia,mas  sem poder brincar nem abrir a boca, me aborrecia. Então sem saber como, adormecia e de repente estava de novo na cama da minha tia. A velha tinha aberto  pra mim a cancela do sonho. Eu,  livre, feito bicho no pasto, brincava solta nos quintais de terra batida onde não havia cercas nem donos.Onde eu era ovelha, camelo, cavalo ou borboleta. Menos barata !