Era o Jabá. O Jabazinho. Era esse o nome dele. Quer dizer, o apelido, o nome mesmo era André. Sim, o Andrezinho. O Andrezinho da Mamãe porque nunca ninguém jamais o chamou assim, pelo nome. Só a mãe e um dia, o cara do cartório. Mas Andrezinho era eufemismo, coisa de mãe, pura proteção porque o Jabá era um moleque enorme, gorduchão, umas bochechas vermelhas e inchadas de buldogue velho, cheio de sardinhas, e um cabelo ruivo, todo espetado : a mãe passava gel todas as manhãs antes do moleque ir pra escola.O cheiro do gel era horrível, devia ser da pior qualidade porque aquele cheiro misturado ao suor dele, que vinha da cabeça e ia escorrendo pela cara juntava com o odor da roupa impregnada de cigarro da mãe e misturava com aquela fedentina de chulé que subia do seu all star vermelho , que ele não tirava nunca...Meu Deus! Os moleques da minha turma; o Fumaça, o Jeca, o Netinho avisavam de longe quando ele vinha chegando : O Jabá tá vindo, ô o Jabá ! Ô o Jabá ! E o pessoal se dispersava. A mãe já tinha ido uma tantas vezes reclamar com a professora que o menino era maltratado na escola. Onde já se viu o Andrezinho, o filho dela, um menino tão bonzinho, que não era capaz de fazer mal nem pra uma mosca, não falava um palavrão, nada e a criançada chamando ele na escola de tudo quanto era nome : de Jabazinho, de Fedentina, de Sovaco de Velha...Que um dia o menino chegou cabisbaixo, tinha vindo da rua, e o Fumaça junto com o Dantinho e o Didico, que eram da outra série, tinham chamado o Andrezinho de um nome tão feio que o menino não conseguia nem repetir, ficou mudo, acabrunhado num canto o dia inteiro, que não tocou na comida. E ela ameaçou de tirar o menino da escola, ir na Delegacia de Ensino dar queixa da professora se ela não tomasse providência.
Mas todo mundo achava; as mães dos outros garotos, o pessoal do bairro e até a diretora, que a mãe exagerava. Que isso era coisa de criança. Como é que a professora ia controlar a boca suja e a maldade dos meninos? Todo mundo sabe que menino é terrível, adora botar apelido, avacalhar com todo mundo, ainda mais com o Jabá, o queridinho da mamãe.Nós, as meninas não, mas os meninos...
A professora tentava se defender como podia, ameaçava chamar a diretora, suspendia o recreio, colocava o Jabá pra sentar na frente pertinho dela, e aí que a coisa “fedia mesmo”. Aquilo tudo era um prato cheio pra eles, e a lista de apelidos do Jabá só aumentava. A molecada segurava a língua afiada só na frente da professora porque quando chegava o recreio não havia limites pra imaginação dos meninos : Chulé de Defunto, Bafo de Urubu, Punzinho de Gambá era o que de mais cheiroso se podia esperar deles.A professora foi largando mão, evitava o assunto, fazia que não ouvia, desconversava. Também já não queria receber a mãe, que vinha sempre com a mesma ladainha – Ah, meu Andrezinho ! ! ! Xingaram meu Andrezinho !!
Um dia ela se encheu, disse duro pra diretora que se ela quisesse que recebesse a mãe, que isso estava prejudicando o andamento da matéria, que ela não ia dar bola pra confusão de moleque. A diretora fez a parte dela, dava uns toques de leve pra mãe, pra ver se ela botava o menino pra tomar banho e lavar a cabeça antes da escola, que ela sabia que não era culpa da mãe,que essa moda agora dos meninos de botar gel ! A diretora chegou até a abrir mão do uso do uniforme, disse que não iria exigir isso do menino, imagina, se ela sabia que a mãe tinha que lavar a camiseta dele, que criança sua muito mesmo, corre no recreio, rola no chão. Camiseta de escola suja demais! A mãe nem tinha de ter obrigação de ter uma por dia,que uniforme era caro, mais valia que o menino viesse com uma outra branca, sem emblema mesmo, mas que tivesse limpinha e cheirosa, enquanto a mãe lavava a da escola. Mas essa sabatina pedagógica toda não adiantava muito com a Dona Carminha, a mãe do Andrezinho. Ela estourava logo:
_ O que a senhora quer dizer com isso Dona Matilde ? Que eu não dou banho no Andrezinho ? Que eu não lavo a roupa dele ?
E não lavava mesmo.
De modo que as circunstâncias e o tempo acabaram cunhando no menino o nome de Jabá. O Jabazinho.
A casa do Jabá era colada na minha. Na frente, do outro lado da rua era a casa do Fumaça e a gente se reunia na frente da casa dele , porque o Seu Fernando, o pai do Fumaça , que era gente boa e não esquentava com nada, não ia pegar no pé da gente só por causa do barulho. Então a nossa turma ficava até tarde, brincando na rua. E batia , de pirraça, tarde da noite na casa do Jabá. Aí ele saía com os olhos cheios de remela e respondia:
_ Pô, eu já tava dormindo ô !
A camiseta da escola grudada no corpo de suor dava pra ver as banhas do Jabá se derretendo.
_ E aí Jabá, quer participar da Noite de Terror ? A gente deixa, mas a história tem que ser suja, quer dizer sua - a gente falava pra provocar. Porque as de terror eram as que a gente mais gostava. Ele nem precisava responder que a mãe não queria que ele brincasse com a gente na rua porque ela já berrava lá de dentro:
_ André, eu já te falei...será que eu tenho que pegar o chinelo de novo moleque ? Será que com você é só na porrada, Andrezinho ?
E ninguém entendia aquilo.
_ E aí, André, para de frescura, fica aí com a gente cara, vamos brincar ? Se você for homem vamos agora na Viela dos Cacos, no Escadão. É lá que a gente vai contar as histórias.
_ Pô, eu já falei que minha mãe não gosta que eu fique até tarde na rua, ela não gosta, já é tarde, eu tenho que entrar. Vocês não ouviram minha mãe chamando ?
E era sempre a mesma história com o Jabá. Até que a gente deu de bater na casa dele mais cedo e um dia conseguimos finalmente arrastar o Jabá pro Escadão. A gente deixou a história de terror dele por último, porque os meninos disseram que era especial, que ele nunca tinha vindo na turma contar uma história. Mas quando chegou a vez da história dele o Jabá falou:
_ Eu tenho que ir, eu tenho que ir, minha mãe vai me pegar, ela disse que era pra eu voltar cedo, ela não gosta que eu fique até tarde da noite.
_ Mas o que isso Jabá, ? Ainda tá cedo... e a sua história Jabá ?
_ Não, não , eu tenho que ir, eu tenho que ir.
E a gente estranhou aquilo, porque a mãe do Jabá era uma louca, a gente sabia, mas não com ele... Ele era o Andrezinho. Então a gente cismou de entrar na casa do Jabá, a gente ia entrar lá de qualquer jeito ! E o Fumaça falou:
_ Então a gente vai com o Jabá, pessoal , pra mãe dele não bater nele.
_ Não, não, você tá louco, Fumaça ? Minha mãe me arrebenta.
E amarelou...Nunca tínhamos visto o Jabá daquele jeito. A gente sempre achou que aquela conversa de pegar o Jabá na porrada era conversa mole da Dona Carminha, que cão que late não morde. Quem não conhecia a fama de escandalosa da mãe do Jabá, que só sabia armar o barraco e depois saía com o rabinho entre as pernas... ? Ah, meu Andrezinho, meu Andrezinho...
Então a gente resolveu que ia pagar pra ver aquilo da mãe do Jabá pegar ele na porrada.
A turma toda se postou diante do portão da casa dele e, o Naldinho que sabia que era o único menino que a mãe do Jabá tolerava, tomou coragem e gritou do portão:
_ Ô Dona Carminha, não bate no Jabazinho, não ! A culpa foi toda da gente que segurou ele na rua. A gente tava contando história de terror.
E Dona Carminha, bufando, saiu de camisola, os peitões aparecendo, e assim toda séria, com aquela voz rouca e o bafo de cigarro que se sentia de longe foi logo declarando:
_ História de terror, vocês vão ver agora o que é história de terror ! Entra já Andrezinho e traz o meu chinelo.
O Jabazinho entrou apavorado trazendo o chinelo rosinha de camurça da mamãe e levou uma baita surrinha cor-de-rosa. O Andrezinho...