quarta-feira, 24 de agosto de 2011

O velho amigo e a Poética

Ontem me veio ele, agora em vestes de velho amigo, tão alegre e lépido , parecia passarinho... Suas asinhas em riste me abraçaram sofregamente num suspiro de alecrim.
Sua camisa branca, favorita, de colarinho puído, alva, onerosamente esfregada à mão me ofuscou a vista e por isso virei rapidamente  o rosto para beijar sua face. Me apresentou  breve e pesadamente seu velho amigo, o Aristóteles, enquanto ainda arrastava-o pelos braços.
Sentou-se desajeitadamente, mas endireitou-se logo,  à moda de um cavalheiro ,  na cadeira à frente  e pediu seu favorito chocolate suíço. Enquanto engolia consideráveis goles da leitosa bebida  me dava instruções aritméticas de como pensar a vida em termos de  Poética e olhava para o Outro, calculadamente, a intervalos regulares, acenando a cabeça em tom afirmativo como que pedindo e dando ao mesmo tempo  os mesmíssimos conselhos a si e ao Mestre, que calado, escutava. Sim,  àquele mesmo  que em um dia remoto teria sido seu orientador mudo  a esse meuamigo  tão autodidata e resoluto, avesso à conselhos, de nenhuma espécie, nem acadêmicos. E veja que a Academia era para ele o Paraíso, o lugar último onde iam as sescientes almas que tendo já galgados os degraus da sabedoria terrena, davam seu último suspiro e ingressavam no abismo do conhecimento sem fim.Eu, cartesianamente anotava tudo na minha cadernetinha de super-mercado enquanto atentamente recebia suas instruções pausadas e religiosamente proferidas.
Uma hora ou outra pigarreava baixo, contidamente, para não desconcentrar a conversa nem dar vexames , seus modos contidos, delineadamente precisos...Exasperações  não eram de fato do seu feitio.Sua natureza era branda, etérea demais, lânguida demais para um sorriso demasiado curvo, para um gesto demasiado transverso, para um conceito demasiado intrínseco.Tudo nele era sem bordas e exato. Seu rosto delicado, de traço instruído e culto o deixava mais remoçado, apesar da idade em franca evolução. Éramos amigos, chutando baixo, uns 20 anos para mais. E ele já era consideravelmente velho, pelo menos para mim, naquela ocasião. Mas isso não importava, nunca nos importou, pelo contrário, era uma pitada a mais, um devaneio a mais, uma estrofe a mais de um poema longo, de uma epopéia que eu ia tragando a gotas, meticulosamente nossas vidas . Cada verso uma fisgada, um fino fio de ácido que corroia em silêncio, os nervos cindindo suas marcas indeléveis no meu enredo.
Nas noites sem lua, passados os anos, o corpo já inerte na cama, esmaecido, e  ainda o veneno agindo, agindo ainda... Seu efeito concentrado, cumulativo sob a pele inchada e ele ali, sem arredar passo, uma cobra atávica, já sem dentes, enrolada e mórbida, sob meus pés.

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