domingo, 8 de abril de 2012

O tempo

O tempo todo pensamos no tempo
enquanto o tempo passa o tempo todo

o tempo, impiedoso, nem sequer nos nota diante das horas, a fazer contas dos minutos que faltam dos segundos que restam das horas que somam os minutos que passam dos segundos que correm ao dobrar as curvas cíclicas do relógio que pulsa
o tempo, ordinário e sem grandes pudores , passa  veloz
por entre nossas pernas e sai do outro lado até alcançar o abismo das horas mortas
E em vão nos damos conta de que o relógio da cozinha
está adiantado por pelos menos três minutos mas não perdemos tempo em acertar as horas; melhor é descontar rapidamente o prejuízo,rodando apenas uma vez a chave na fechadura.
Quando chegamos na esquina percebemos que esquecemos o relógio e gastamos um tempo razoável para localizá-lo, mentalmente, em alguma parte recôndida do aposento recém abandonado.E agora, quanto tempo terá sido roubado, e o tamanho do prejuízo, nem se fala, meu DEUS...
Não será perda de tempo voltar agora na tentativa tola de agarrar o tempo e acorrentá-lo ao pulso...

Há anos abomino os relógios
e acho perda de tempo ficar a pensar nele enquanto ele passa, inexorável diante de nossas pálpebras envelhecendo-se...
Melhor ir colher frutas no quintal
Pensei que pudesse te encontrar todas as manhãs nas névoas esvaescentes de um outro tempo, esse não...
Mas nem era assim. No entanto, imaginei-te antes tragado pelas curvas diáfanas da poeira branca que me atingia as narinas como sulfato.
Então, quando ousei  sussurar  teu nome nas entrelinhas das minhas mãos, apalpando inútil sua sombra entre arvoredos e pássaros, a palavra já havia se dissipado na água cristalina e furtacor do lago.A tensão dos lábios se tranfigurara, então, em silêncio, e essa foi a penúltima palavra.
Desse mesmo material extraio a cor púrpura dos teus olhos para fazer uma pérola e te dou.
Depois, a sós, nós e nossos venenos lentos,
misturando na pele o odor das acácias
nos maltratamos.

Dessa mesma tinta extraio o leite dos teus seios. E os anéis.
Parcelo em nacos de ternura os doces venenos que me saem como manchas pela pele.
Corpo
Lugar de silêncios
Silêncios de onde brotam ruídos, borbulham chiados, fagulhas, chispas,
xiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
Pulsação, Respiração,Ritmo , Rima, Métrica
Música
Movimento
Batidas , estalos,palmas, pés
Sintonia
Sutileza
Compasso interior
Comia maças, era assim...
Mastigava sua carne tenra, transgredindo a pele ácida com a voracidade de cães no cio. Amamentando a vida com sua teta enorme, suculenta e lisa, aspirava para dentro de si o veneno doce de uma longa e esperada despedida. Sua fala era a um só tempo  virulenta e estéril, como quem corrói as unhas sujas  para fazer uma assepsia  em si mesma. E quando não, acanhava-se, ressentida, consternada   pelas mazelas dos outros. Era dando gargalhadas e migalhas aos pombos nas praças, que  ela esperava regenerar o mundo.E sonhava sonhos azuis.
Parecia solfejar entre os muros apunhalando o vento com a mão inerte, mas não...Carmem, existia inteira,   e era esse seu nome.
Carmim, no entanto,  lhe chamavam os outros, pelo simples fato de que pintava, de quando em vez, seus cabelos de vermelho. A raiz escura e rebelde denunciava a genealogia mulata, apesar dos lábios finos e da voz em falsete, lhe darem um tom esbranquiçado e lânguido. Distraindo-se um pouco, saía a passear pelas ruas quando a asfixia do quarto lhe causava  arrependimento ou  náusea.Como de costume, sua vida mantida numa  espécie de meio fio,entre a excitação e o espasmo,  lhe causava um horror mediado pela certeza difusa de que o tempo, tênue e apoiado em sua própria fissura,  nunca se romperia, afinal.E ela o sabia, entregue ao acaso furtivo das horas, nas manhãs embaladas pelo sonho confuso dos dias.Era, además  altiva em sua melancolia, se bem que a mania de viver assim,nas entrelinhas, lhe dava uma sensação difusa de inutilidade.Cabisbaixa, suspirando os amores que não tivera, a audácia postergada dos casos furtivos, das venturas inacabadas do fim de tarde nas conversas regadas a café com leite e aspirinas, ela vivia imersa na correnteza inexorável dos dias, sob o murmúrio abissal das estações.Como um trem em vagões partidos sob trilhos alinhados, prestes a descarrilhar, ela no entanto seguia o fluxo de vida pulsando sob as veias finas, indefectível.
De nada adiantava esconder-se entre as raízes pútridas das coisas ,  pois uma camada sempre nova, restaurada sob a casca grossa, anunciava  um tempo de germinações sob a  aspereza do tronco.E tudo estaria em equilíbrio novamente.Era tarde no entanto para sonhar...Por isso ela agora tinha um sono profundo, nacarado e duro como seus olhos de marfim.
Como chegar perto e tocar esse emaranhado de fibras
Distendendo nossos músculos nessa festa em carrossel
Cavalinhos  rodas girando purpurinas pó de arroz nas escadas em caracol
Levantar vôo e deixar os corpos sob as poças, flácidos
Calados e sem caibras
compondo a próxima canção
Deus há de perdoar-me  o vício imoral do meu olho esquerdo quando, por mera distração, atravessa os corpos em cena e vê mais fundo a alma dos vagabundos e suas infrações. Nela enxergo a beleza nua atada por um fio de nylon cor-de-rosa sustentando, imóvel, o peso de  arranha-céus.
Essa matéria musgo
que se enreda
 pelas cordas feito líquen
 nem ao menos toca
as gramaturas da matéria fina

o que brota  da saliva
 está para além de uns portões de ferro

vem cavalgando
na madrugada
e me atinge a medula como uma flecha

um pulso forte
reverbera
 no meio do plexo num latejar dolorido

batidas tolas,
descompassadas
disparam o gatilho

e eu morro
os sentidos frouxos
dilacerados e moles

me sinto abatida
como um animal
num ritual em  sacrifício
aos deuses da floresta
que ainda
nem me emprestaram seu nome

será feito de artérias e sonhos
esses delírios
habitando plenos
minhas  zonas longitudinais ?
de onde viriam 
esses caracóis
enroscados aos fogos dos cabelos

e as algas
que brotam no verde-hera da língua ?

o  sal tomando conta
dos cantos mais recônditos
de um idioma muito antigo
 já quase extinto

nas praças se ouvem
ao longe
 as canções ancestrais

um coro atinge como mel  minha garganta

tambores
e sons abafados
 vêm chegando dos quatro ventos

apenas música
e neblina na paisagem
nua dos sentidos atônitos

alaúdes e araucárias
 emprestam seus corpos
para que os nossos vibrem

o  que sinto agora
nem tem forma e nexo


 é  força de um touro ébrio  dançando blues















Uma a uma vão saindo pelas bocas
as pedras polidas de sal
E partem
Nem vermes nem harpas
Musgos
conchas
e um dilúvio de paz
Os verões atravessando gerânios
Gotas caindo nas portas
Esvanecendo quintais
Poças de mel e deleite
Desertos espargindo dos mares
Atravancando desfeitos
Os nós
nossos leitos
e o cais

Para unguentos e feridas

Esfacelados momentos revivo pedaços de céu em mar aberto
Minhas entranhas necessitam urgentemente encontrar um alívio existencial
Algo para o qual dedicar-me de corpo e alma
Quero vida brisa frescor amor de verdade e pele
Desejo imenso seus carinhos outra vez
Eu que queria economizar  afagos
Retroalimentar gestos
Profanar catedrais
Menti para minhas verves
Ainda sou poeta de coisas sem merecimento
Sinto e nem sei quando
Ainda bato nas portas a procura de nexos
 E me saio bem mal, raras vezes encontro alguém que me olha no fundo
E me traduz

Encurtando desfechos...Ana, Ana ...!

Terá se passado um ano. Dois ?  Os mais ? Intensos , ininterruptos, benfazejos... Agora o suave sino tilintava pleno em seus ouvidos. Como uma vaga reminiscência...
Ana, Deus do  céu ! Depois daquele episódio como cumpriria ela,  tranqüila,  seus dias turvos ?  Essa mulher tinha cravado pra sempre, nas membranas das palavras,  as lacunas do tempo.
Pudera. Não ser perturbada por aquele tremor violento que descende de cada gesto voluptoso de seus  dedos tensos ( Seriam tensos os dedos dela ? Como então seriam ? ).
Assim se aplacava a fúria férrea que jazia  enlevada  nas noites mal dormidas da casa deserta.As paredes manchadas de tinta amarelo lilás. Cada uma a  seu tempo vibravam.
E as tramas seguiam moduladas por uma voz estridente, a garganta solfejando sons e notas ainda dissonantes. Claras as palavras lhe saíam como bolhas da boca, saltitantes e aéreas. Era como sua existência. Feita de hífens e pontos, pontos e reticências, vírgulas  etc.  etc. E ponto.
Claras e ovos inteiros na cozinha, intactos. E o cheiro azedo da geladeira. Apenas o sol acalmava o ânimo abafado dos cheiros misturados: incenso e alecrim, o pó pegajoso dos móveis, o tom embolorado dos discos de vinil misturado ao cobre das panelas.
A parentela toda rodeando seus pertences. Objetos e apegos, nada tinha muita forma; afinal todos agora dormitavam em seu afeto morno. Ana pendia etérea entre os corredores do aposento, emanava grunhidos baixos, ritmicamente  misturados ao pó de arroz que transitava entre papéis e pedidos médicos.
Ampliar a existência era aceitar o sexto e mais potente sentido a que herdara de nascimento antes mesmo de saber que   viera ao mundo. Era para sempre estar atada. E não havia escolha. Melhor então era organizar escritos, escolher cebolas, jogar o resto de água dos vasos. Avançar calma e lentamente. E respirar, respirar. Intervalos de existência verdadeira ela pedia. Queria a vida com um pouco mais de cor nos olhos,  quase brancos,  quase opacos.Queria sentir que estava viva, pelo menos uma vez na vida !
Ana , dependurava-se na janela,às vezes, para descansar.Como se tirasse férias de si, langorosa, ardente, saciada.Ouvia o som dos passantes, os miados de algum gato entre telhados, o arrulhar das pombas...o resto era silencio, ausência...Os muros dos vizinhos a tolher-lhe a visão ampla da rua, a avenida larga do outro lado, os carros e as buzinas em desassossego.Se não fosse por isso teria se esquecido que a vida é movimento, o fluir contínuo dos fatos...Estaria abandonada à inércia dos dias calmos, sem acontecimentos.Dentro, uma chama morna a empurrava, sem muita certeza, para a vida.Não havia mais, quem de fora, justificasse seu esforço por existir, sua sede de acontecimento.A vida então era isso...? Um pulsar solitário e vago, um repetir constante de horas, de dias, de semanas... Desde aquele dia, em que decidira virar as páginas de sua história, descobrira, sobressaltada, que ela agora teria, que por si mesma, de punho em riste, escrever o desfecho, simular o passar das horas com algum leve contentamento. Inventar sentidos, construir pontes,a passos largos,  alimentar, com seu bafo quente, o hálito infantil das tramas por engendrar-se, recém saídas do abismo da pré-ciência. Não havia mais personagens, enredos, tramas pré-fabricadas pelas mãos desatentas do chamado destino a que havia se submetido a anos a fio. Agora a vida pulsava e era agarrada por suas mãos de esponja, virulenta e arredia, transfigurada e ofegante...Insaciável...Ana mastigava punhados de arroz entre os dentes tensos, acirrados, imaginando o outro dia, tentando puxar pela memória algum enredo novo, algum fato inusitado, algum novo amor.Mas não havia nada com que pudesse agarrar-se, agora.Se olhasse para trás, para fugir do que pudesse existir pleno a cada instante, se nele não coubesse ou tivesse a sensação de explodir, tamanha a ânsia de viver, restaria ainda olhar para trás e lá estaria esperando de braços abertos seu passado, como tantas vezes fizera, para fugir do instante presente.Mas não... dessa vez não iria, dessa vez seria outra a história, ela não ousaria olhar para trás,sob o risco de  transformar-se, como na lenda,  numa estátua de sal.Não dessa vez. Nunca mais...Colocou o avental manchado de gordura e foi para a cozinha, esperando que aquele dia fosse embora pra sempre e levasse com ele todo o desejo negado de existir por inteira, como era, plena e salva do abismo de sentir-se a um só tempo viva, plenamente viva e morta para o passado que deixava para trás, sob a sombra de seus pés cansados e plenamente satisfeitos.Satisfeitos por ter ousado dar mais um passo para longe do abismo.
Pulsa um corpo um ato um peito um passo
No poente paira um  peixe range a porta pia um gato
Passarinhos assobiam minha madrugada com uma canção de ninar pintassilgos

Quando eu tinha  apenas um par de olhos redondos e de vidro
Eu era tão pequena,
tão pequena
Que nada via a não ser eu
Tão pequena,
 tão pequena
com um par de olhos redondos  e de vidro
Que nada via  a não ser eu
tão pequena,
tão pequena... 
Parto da segunda linha.
No entanto  ignoro  os trechos  do que poderia ter sido  a decomposição do enredo no núcleo tenso dos  versos retorcidos.Como rastros de lesmas nas paredes do banheiro.Ali onde haveria um espelho e a cara refletida daria sinais de profundo cansaço.
Ativo com isso a assimetria dos súbitos instantes como os fios suspensos tecidos entre as sete patas da aranha e uma gota oblíqua sob a pele.Um plasma recobre os tecidos e a libélula foge.
Nas montanhas o gelo derrete e faz muito frio. Mas é ali um lugar que só se encontra onde e quando nunca se chega depois. Nas sombras a espada corta a fumaça que sobe dos orifícios verdes de uma esponja. A orla  inteira aparece e é um ponto e meio e depois uma linha tracejada e reticências. E no momento exato quando isso aconteceu  era esperar apenas que a estrofe extravasasse  na corda bamba do poente. E neva.Tessitura de barro onde a pele esticada sobrepuja a ostra.
Quando então um dia daqueles se entra no pomar para apanhar pirilampos e apenas um estivera  maduro.Espargindo esteve nos músculos retesados o pó moído das entranhas e calcificou-se a nota na rótula retumbando de uma asa.E os lençóis.Ali onde só alcança a derivação do vão da escada em ascensão.Como os pêlos de um gato na escuridão reascende o brilho luminoso do olho  do animal em chama.
Se não soubesse traria a letra impressa na caligrafia exangue da pista de pouso e o arco, a esfera vazia. Preencheria de frestas a boca em oração com a polpa da fruta maturada e doce.
Escafandrista da canção que não tem nota ,  apenas pausa e o eco abafado do tambor.
Princípio e inércia alisam a curva montada no lombo do horizonte e cavalga. Quando  os cheiros e ácaros se misturam numa casca fina e dentro o amarelo embala o tempo a solavancos.
A derme resiste a ferroadas e a abelha encosta a púbis na varanda quando a tarde cora de manhãs os jardins regados a papoulas. E dorme.
Esporas e pedras, laringes e ungüentos perfumam a sépia quando vejo o colorido abafado das tavernas. Não há corpo que chegue pra tanto silêncio nem hóstia que proteja tanta homilia. E continua. Infinitamente como um sopro ardendo no peito. Azul escarlate e relva nas margens planas do profundo oceano onde fossem plantar na terra os tentáculos .
Florescência e trégua como tartarugas boiando na areia morna do ovo por eclodir.