domingo, 8 de abril de 2012


Encurtando desfechos...Ana, Ana ...!

Terá se passado um ano. Dois ?  Os mais ? Intensos , ininterruptos, benfazejos... Agora o suave sino tilintava pleno em seus ouvidos. Como uma vaga reminiscência...
Ana, Deus do  céu ! Depois daquele episódio como cumpriria ela,  tranqüila,  seus dias turvos ?  Essa mulher tinha cravado pra sempre, nas membranas das palavras,  as lacunas do tempo.
Pudera. Não ser perturbada por aquele tremor violento que descende de cada gesto voluptoso de seus  dedos tensos ( Seriam tensos os dedos dela ? Como então seriam ? ).
Assim se aplacava a fúria férrea que jazia  enlevada  nas noites mal dormidas da casa deserta.As paredes manchadas de tinta amarelo lilás. Cada uma a  seu tempo vibravam.
E as tramas seguiam moduladas por uma voz estridente, a garganta solfejando sons e notas ainda dissonantes. Claras as palavras lhe saíam como bolhas da boca, saltitantes e aéreas. Era como sua existência. Feita de hífens e pontos, pontos e reticências, vírgulas  etc.  etc. E ponto.
Claras e ovos inteiros na cozinha, intactos. E o cheiro azedo da geladeira. Apenas o sol acalmava o ânimo abafado dos cheiros misturados: incenso e alecrim, o pó pegajoso dos móveis, o tom embolorado dos discos de vinil misturado ao cobre das panelas.
A parentela toda rodeando seus pertences. Objetos e apegos, nada tinha muita forma; afinal todos agora dormitavam em seu afeto morno. Ana pendia etérea entre os corredores do aposento, emanava grunhidos baixos, ritmicamente  misturados ao pó de arroz que transitava entre papéis e pedidos médicos.
Ampliar a existência era aceitar o sexto e mais potente sentido a que herdara de nascimento antes mesmo de saber que   viera ao mundo. Era para sempre estar atada. E não havia escolha. Melhor então era organizar escritos, escolher cebolas, jogar o resto de água dos vasos. Avançar calma e lentamente. E respirar, respirar. Intervalos de existência verdadeira ela pedia. Queria a vida com um pouco mais de cor nos olhos,  quase brancos,  quase opacos.Queria sentir que estava viva, pelo menos uma vez na vida !
Ana , dependurava-se na janela,às vezes, para descansar.Como se tirasse férias de si, langorosa, ardente, saciada.Ouvia o som dos passantes, os miados de algum gato entre telhados, o arrulhar das pombas...o resto era silencio, ausência...Os muros dos vizinhos a tolher-lhe a visão ampla da rua, a avenida larga do outro lado, os carros e as buzinas em desassossego.Se não fosse por isso teria se esquecido que a vida é movimento, o fluir contínuo dos fatos...Estaria abandonada à inércia dos dias calmos, sem acontecimentos.Dentro, uma chama morna a empurrava, sem muita certeza, para a vida.Não havia mais, quem de fora, justificasse seu esforço por existir, sua sede de acontecimento.A vida então era isso...? Um pulsar solitário e vago, um repetir constante de horas, de dias, de semanas... Desde aquele dia, em que decidira virar as páginas de sua história, descobrira, sobressaltada, que ela agora teria, que por si mesma, de punho em riste, escrever o desfecho, simular o passar das horas com algum leve contentamento. Inventar sentidos, construir pontes,a passos largos,  alimentar, com seu bafo quente, o hálito infantil das tramas por engendrar-se, recém saídas do abismo da pré-ciência. Não havia mais personagens, enredos, tramas pré-fabricadas pelas mãos desatentas do chamado destino a que havia se submetido a anos a fio. Agora a vida pulsava e era agarrada por suas mãos de esponja, virulenta e arredia, transfigurada e ofegante...Insaciável...Ana mastigava punhados de arroz entre os dentes tensos, acirrados, imaginando o outro dia, tentando puxar pela memória algum enredo novo, algum fato inusitado, algum novo amor.Mas não havia nada com que pudesse agarrar-se, agora.Se olhasse para trás, para fugir do que pudesse existir pleno a cada instante, se nele não coubesse ou tivesse a sensação de explodir, tamanha a ânsia de viver, restaria ainda olhar para trás e lá estaria esperando de braços abertos seu passado, como tantas vezes fizera, para fugir do instante presente.Mas não... dessa vez não iria, dessa vez seria outra a história, ela não ousaria olhar para trás,sob o risco de  transformar-se, como na lenda,  numa estátua de sal.Não dessa vez. Nunca mais...Colocou o avental manchado de gordura e foi para a cozinha, esperando que aquele dia fosse embora pra sempre e levasse com ele todo o desejo negado de existir por inteira, como era, plena e salva do abismo de sentir-se a um só tempo viva, plenamente viva e morta para o passado que deixava para trás, sob a sombra de seus pés cansados e plenamente satisfeitos.Satisfeitos por ter ousado dar mais um passo para longe do abismo.

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