domingo, 8 de abril de 2012

Comia maças, era assim...
Mastigava sua carne tenra, transgredindo a pele ácida com a voracidade de cães no cio. Amamentando a vida com sua teta enorme, suculenta e lisa, aspirava para dentro de si o veneno doce de uma longa e esperada despedida. Sua fala era a um só tempo  virulenta e estéril, como quem corrói as unhas sujas  para fazer uma assepsia  em si mesma. E quando não, acanhava-se, ressentida, consternada   pelas mazelas dos outros. Era dando gargalhadas e migalhas aos pombos nas praças, que  ela esperava regenerar o mundo.E sonhava sonhos azuis.
Parecia solfejar entre os muros apunhalando o vento com a mão inerte, mas não...Carmem, existia inteira,   e era esse seu nome.
Carmim, no entanto,  lhe chamavam os outros, pelo simples fato de que pintava, de quando em vez, seus cabelos de vermelho. A raiz escura e rebelde denunciava a genealogia mulata, apesar dos lábios finos e da voz em falsete, lhe darem um tom esbranquiçado e lânguido. Distraindo-se um pouco, saía a passear pelas ruas quando a asfixia do quarto lhe causava  arrependimento ou  náusea.Como de costume, sua vida mantida numa  espécie de meio fio,entre a excitação e o espasmo,  lhe causava um horror mediado pela certeza difusa de que o tempo, tênue e apoiado em sua própria fissura,  nunca se romperia, afinal.E ela o sabia, entregue ao acaso furtivo das horas, nas manhãs embaladas pelo sonho confuso dos dias.Era, además  altiva em sua melancolia, se bem que a mania de viver assim,nas entrelinhas, lhe dava uma sensação difusa de inutilidade.Cabisbaixa, suspirando os amores que não tivera, a audácia postergada dos casos furtivos, das venturas inacabadas do fim de tarde nas conversas regadas a café com leite e aspirinas, ela vivia imersa na correnteza inexorável dos dias, sob o murmúrio abissal das estações.Como um trem em vagões partidos sob trilhos alinhados, prestes a descarrilhar, ela no entanto seguia o fluxo de vida pulsando sob as veias finas, indefectível.
De nada adiantava esconder-se entre as raízes pútridas das coisas ,  pois uma camada sempre nova, restaurada sob a casca grossa, anunciava  um tempo de germinações sob a  aspereza do tronco.E tudo estaria em equilíbrio novamente.Era tarde no entanto para sonhar...Por isso ela agora tinha um sono profundo, nacarado e duro como seus olhos de marfim.

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